O Que Há-de Voltar a Passar
SINOPSE
Chega agora "O Que Há-de Voltar a Passar", um livro de carácter fragmentário, que se vai construindo a si próprio, e que é também "o mais pessoal dos [seus] livros" (JL, ib.). Isto, apesar de o autor afirmar que não se pode confundir com o narrador, isto é, com tudo aquilo que o narrador pensa. É um 'work in progress', onde o narrador tem como interlocutor Jano, o deus das duas cabeças (que, por isso, pode olhar para trás e seguir em frente), onde há uma forte tentação pelo aforismo (há mesmo um texto que se chama 'Pequena teoria do aforismo', que, como dizia Goehte, citado pelo autor na mesma entrevista, "mesmo quando só parece divertido", [...]é mais do que isso, é algo que nos põe a pensar, levanta uma dúvida").
CRÍTICAS DE IMPRENSA
Je sais qu'ici il ne se passe rien, il ne passe personne. Mais moi-même, il y a des moments où je me mets à fixer le tournant de la route malgré moi.
Julien Gracq
À distância, para lá da curva da estrada, ladrou um cão. Às vezes, depois (quanto tempo depois?), a figura de um homem parecia recortar-se na decadência do dia. Era quase como se fosse noite. Aproximava-se, talvez, mas como se estivesse imóvel, sempre caminhando, ligeiramente inclinado para a frente, é talvez o peso de qualquer coisa que traz atravessada sobre os ombros (uma mochila? um molho de lenha? um animal doente?). Finquei os cotovelos na janela, a voz da minha mãe gritou qualquer coisa na cozinha, o homem, imagino, continua a avançar com uma regularidade inquietante, a mão direita segurava um volume (uma trouxa? um fardo? um saco de viagem?). Observava-o fixamente, cravava nele o olhar querendo surpreender-lhe o traço de um sobressalto, teria medo de mim?, pergunto-me, mas eu, o que fica, o que se debruça da janela para ver quem passa, seria temível? Poderia dizer-se que inspirava receio a alguém? Mais perto de mim, agora mais perto, o homem não fazia nada, apenas caminhava, era um movimento quase mecânico, somente a figura se movia, podia não ser um homem, ou ninguém, apenas uma forma por dentro da noite, traz no rasto uma matilha de cães indiferentes, ele aos cães, e eu debruço-me sobre a obscuridade, gostaria de a poder afastar como uma cortina, ficar de dentro com a mão a segurar as pregas, a ver, lá fora, o homem que vai a passar. Então, quando chegava em frente da janela, havia um brusco momento de pânico. Eu recuava dois passos, metia-me para dentro, o homem passava, sem me ver, sem olhar para mim, e era essa estranha indiferença que me apavorava, todos os dias, à mesma hora, porque todas as coisas passam sem nos ver, e nós a elas, sabemos que estão ali e gostaríamos de as ter para nós, evidentemente vistas, mas as coisas são alheias, tudo será apenas o rasto do que passou e a secreta esperança de que volte a passar, para uma vez mais percebermos que não conseguimos ver o que julgamos conhecer de cor. Mesmo vasculhando na memória, não consigo dizer se era de noite ou de dia o tempo que o homem levava a passar. Mas é sobre um fundo escuro que melhor imagino os seus gestos, o ladrar dos cães, o volume sobre os ombros, o chapéu caído sobre os olhos. De noite, é quando o vejo melhor.
Je sais qu'ici il ne se passe rien, il ne passe personne. Mais moi-même, il y a des moments où je me mets à fixer le tournant de la route malgré moi.
Julien Gracq
À distância, para lá da curva da estrada, ladrou um cão. Às vezes, depois (quanto tempo depois?), a figura de um homem parecia recortar-se na decadência do dia. Era quase como se fosse noite. Aproximava-se, talvez, mas como se estivesse imóvel, sempre caminhando, ligeiramente inclinado para a frente, é talvez o peso de qualquer coisa que traz atravessada sobre os ombros (uma mochila? um molho de lenha? um animal doente?). Finquei os cotovelos na janela, a voz da minha mãe gritou qualquer coisa na cozinha, o homem, imagino, continua a avançar com uma regularidade inquietante, a mão direita segurava um volume (uma trouxa? um fardo? um saco de viagem?). Observava-o fixamente, cravava nele o olhar querendo surpreender-lhe o traço de um sobressalto, teria medo de mim?, pergunto-me, mas eu, o que fica, o que se debruça da janela para ver quem passa, seria temível? Poderia dizer-se que inspirava receio a alguém? Mais perto de mim, agora mais perto, o homem não fazia nada, apenas caminhava, era um movimento quase mecânico, somente a figura se movia, podia não ser um homem, ou ninguém, apenas uma forma por dentro da noite, traz no rasto uma matilha de cães indiferentes, ele aos cães, e eu debruço-me sobre a obscuridade, gostaria de a poder afastar como uma cortina, ficar de dentro com a mão a segurar as pregas, a ver, lá fora, o homem que vai a passar. Então, quando chegava em frente da janela, havia um brusco momento de pânico. Eu recuava dois passos, metia-me para dentro, o homem passava, sem me ver, sem olhar para mim, e era essa estranha indiferença que me apavorava, todos os dias, à mesma hora, porque todas as coisas passam sem nos ver, e nós a elas, sabemos que estão ali e gostaríamos de as ter para nós, evidentemente vistas, mas as coisas são alheias, tudo será apenas o rasto do que passou e a secreta esperança de que volte a passar, para uma vez mais percebermos que não conseguimos ver o que julgamos conhecer de cor. Mesmo vasculhando na memória, não consigo dizer se era de noite ou de dia o tempo que o homem levava a passar. Mas é sobre um fundo escuro que melhor imagino os seus gestos, o ladrar dos cães, o volume sobre os ombros, o chapéu caído sobre os olhos. De noite, é quando o vejo melhor.
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