Quanto valem os “contadores de histórias”?

Os livros, “contadores de histórias” por natureza, têm também esta proeza: da mesma história ou estória nascem diferentes cenários no imaginário de cada leitor, a criatividade estimula-se, e isso tem um potencial de valor incalculável.

Era uma vez… uma pequena lanterna de luz amarelo-fosca, que se acendia ao cair das nove da noite. Saía da estante e ia dar vida às aventuras do livro de serviço. Ou a mãe ou o pai apontavam-na para seguir o rumo da leitura aos dois petizes, atentos à história e às coloridas ilustrações, depois de, por algumas vezes, se terem pegado para segurarem a luminária. O pai lia em surdina, para acalmar a criançada. A mãe gostava de fazer vozes, e isso alongava a brincadeira. O certo é que, já para o final da história, os olhos pesavam, as páginas do livro também e acabavam ambos por cerrar e a luz apagar-se. A lanterna regressava à estante, acompanhada pelo livro, até voltar a brilhar na noite seguinte, por entre as folhas de um novo companheiro.

 

Leitura com os filhos

A lanterna de luz amarelo fosco, 2017

 

Esta é uma das memórias que guardo do importante papel que nós, pais, assumimos enquanto “contadores de histórias” e que, com mais ou menos diferenças, não é a de muitos que me leem agora?

Ficaram gravadas as risadas, as palavras novas, os mimos, as perguntas curiosas, as emoções, os bocejos e os valores que as histórias nos foram trazendo. Ou seja, aspetos fundamentais para o desenvolvimento intelectual e psicoemocional de qualquer criança. Ainda hoje, há certas situações do dia a dia que transpomos para personagens ou momentos das histórias que mais nos marcaram, e é tão boa esta cumplicidade!

Neste momento, os dois petizes já estão mais crescidos e já escolhem os seus livros e os momentos que lhes dedicam. A Mariana, com 8 anos, continua a gostar de ler um pouco antes de se deitar e é muito crítica quanto às atitudes das personagens e às ilustrações! O Diogo, pré-adolescente, já tem outras rotinas e também outros focos de interesse, como os videojogos, que lhe permitem diversão e interação com os amigos e que, infelizmente, nos confinamentos a que estivemos sujeitos, se traduziram nos momentos de sociabilidade possível de muitas crianças e jovens. Por isso, os livros foram perdendo terreno e nem sempre estão incluídos nos tempos de lazer. Mas nós, pais, não desamarmos e fazemos o “lembrete”, continuamos a levá-lo às livrarias a escolher livros, a oferecer-lhe livros em datas especiais e em dias normais. Que nunca lhe faltem os livros!

E aqui a escola tem tido também um papel importante, porque dinamiza momentos de leitura autónoma e recreativa, sejam os “10 minutos a ler”, na disciplina de Português, seja a ocupação do tempo que resta até ao final da aula, depois de concluído um teste ou outros trabalhos. Como, para além de mãe, também sou professora de História, costumo fazer esta proposta aos meus alunos. Muitos são os que trazem na mochila um livro, pronto a saltar para a carteira quando há um tempinho morto a precisar de ser reanimado. Também os incentivo a lerem livros, que abordem assuntos das aulas de História, para as férias do Natal ou da Páscoa. Alguns, assim, “descobriram” as aventuras de Astérix & Obélix, por exemplo, que andavam lá por casa, e também me dão a conhecer livros mais recentes. A partilha das leituras aos colegas também os faz “contadores de histórias” e permite-nos um trabalho importante de separação das estórias da História. No final, ganhamos todos.

É indiscutível a importância da leitura e da aquisição de hábitos de leitura, não só pelas razões que acima já referi, mas, sobretudo, para aperfeiçoar alguns aspetos que, empiricamente, tenho vindo a constatar, e que se revelam cada vez mais deficitários nos alunos: a aquisição e diversificação de vocabulário, a clareza e objetividade na comunicação oral e escrita, a IMAGINAÇÃO e a CRIATIVIDADE. Estes dois últimos são duas competências fundamentais na sociedade dos nossos tempos, em que tudo muda rapidamente, em que temos a sensação de que tudo já foi inventado, em que muita coisa nos surge pronta, finalizada.

Os livros, “contadores de histórias”, por natureza, têm também esta proeza: da mesma história ou estória nascem diferentes cenários no imaginário de cada leitor, a criatividade estimula-se, e isso tem um potencial de valor incalculável.

 

Elisabete Jesus

Mãe, professora e autora de livros de História

 

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