As crianças mentem?

Será que as crianças mentem? Será que seres supostamente tão inocentes e ingénuos têm a habilidade, o engenho e a premeditação suficientes para mentir?

A pergunta põe-se muito frequentemente em casa, na escola, na sociedade. Afinal, o que é mentir? Qual a fronteira entre a mentira e a imaginação? Entre o faltar à verdade e o mentir? Entre o omitir «certos factos» e o contar a história «à sua maneira»?

«A verdade está na boca das crianças!» — diz o ditado. E a mentira? Também estará?

Às vezes é difícil afirmar se uma pessoa está a mentir, porque mentir não é apenas dizer coisas que não são verdadeiras. Mentir pressupõe uma atitude deliberada, ostensiva, mais ou menos premeditada, e isso são intenções que só o próprio poderá confirmar.

Para lá disso, mesmo nas situações em que a verdade é falseada, poder-se-á perguntar porque é que isso acontece. Para defesa pessoal? Para evitar consequências desagradáveis? Porque se leu a realidade de maneira diferente? Porque se está convencido de que os factos foram exatamente assim, mesmo quando não foram?

A história do «rei vai nu» baseia-se no facto de pensarmos que as crianças nunca mentem, pelo que aquela que denunciara o rei seguramente só poderia estar a falar a verdade.

O dia a dia, no entanto, encarrega-se de desmentir esses conceitos — uma coisa é certa: as crianças por vezes mentem… ou, para dizer mais docemente, ocultam a verdade. Mas outra coisa também é igualmente verdade: há que ter cuidado em interpretar essas «mentiras».

Ainda um outro aspeto: qual o grau de ligação entre mentir, em criança, e a aquisição de valores éticos de honestidade e desonestidade que perdurem para a idade adulta? Como se relaciona e valoriza o rigor e a falta dele? A lealdade e a deslealdade? Será que quem mente uma vez, mentirá para sempre?

Mentiras «ligeiras»

As crianças pequenas, de 4/5 anos, gostam de inventar histórias e fábulas. Faz parte do seu desenvolvimento e é, portanto, normal.

Assim como é normal gostarem de ouvir contar histórias, quer as histórias tradicionais, quer as inventadas pelos adultos e, muitas vezes, o que lhes dá mais gozo é ouvir as tradicionais com pormenores novos e distorcendo a «verdade» que conhecem.

Nos primeiros anos de vida há com frequência uma «zona cinzenta» entre a realidade e a fantasia, e as coisas imaginadas acabam por ser tão reais na sua mente que são capazes de jurar a pés juntos que determinadas coisas se passaram, mesmo coisas tão hipoteticamente impossíveis como ter aparecido um leão no infantário ou terem ido dar um passeio a pé ao Japão.

Embora se devam esclarecer as coisas e tentar fazer ver à criança que «provavelmente» não se passaram bem assim, não se deve, neste caso, fazer chacota ou rotular a criança abertamente de mentirosa, já que ela está mesmo convencida de que o que está a contar corresponde à verdade.

A pouco e pouco, com o crescimento, a criança aprenderá a distinguir o real do imaginário.

Se esta «zona cinzenta» for muito vasta e a confusão entre os factos e a fantasia se tornar constante ou não se esbater com a idade, o caso deverá ser debatido com o médico assistente, porque pode estar associado a problemas do foro psicológico e de fuga à realidade, próprios do desenvolvimento de personalidades inseguras e narcísicas.

De qualquer forma, é muito normal as crianças chegarem longe nesta mistura da realidade e da fantasia — basta lembrar os amigos imaginários com quem falam e que «veem», que sentam à mesa ou com quem brincam.

Uma criança em idade pré-escolar já pode mentir para se defender ou para não assumir a responsabilidade do que fez, com medo das consequências. É um tipo de mentira muito vulgar, quase como se negando a verdade ela deixasse de existir.

Os pais deverão aproveitar para duas mensagens principais: a primeira é que, como diz o ditado, «mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo», ou seja, é raro poder levar-se a mentira até às últimas consequências e enganar toda a gente.

A segunda mensagem deverá ser que é mais correto e eticamente certo ser honesto, verdadeiro e rigoroso, mesmo que isso acarrete efeitos secundários menos bons.

Contar exemplos reais e fazer ver que, quando alguém mente para se proteger, há outro alguém que, se calhar, é acusado de algo ou fica como responsável por alguma ação (sendo inocente) é muito importante, para que a criança ou o jovem vejam que as suas ações também atingem outras pessoas e, desta forma, desenvolva a empatia.

Outro tipo de mentira é a mentira para conseguir objetivos pessoais, ou seja, uma forma de estratégia, mais do que defesa — inventar factos para tornear obstáculos e dificuldades que os pais põem a certas atividades. Há que, também neste caso, fazer ver que, por muito que doa, não é mentindo mas sim negociando que se conseguem as coisas, e que a vontade dos pais ou dos adultos responsáveis prevalece sempre no final.

Quando o mentir revela problemas emocionais

Algumas vezes, as crianças contam histórias incríveis, recheadas de pormenores exóticos mas à primeira vista credíveis, um pouco para chamar a atenção dos adultos. Se isso é constante e a verdade e a realidade passam para «enésimo» plano, o facto pode traduzir alguma carência afetiva.

Noutras vezes, a mentira torna-se um hábito, como se tratasse de um jogo (agradável e divertido para a criança) e, embora não existam intenções malévolas, pode degenerar num mau hábito, até porque pode parecer «a solução mais fácil» para não ter de dar contas a ninguém. Esta situação, quando se prolonga, causa bastante sofrimento na família e convém ser veiculada ao médico assistente, para eventual orientação para apoio psicológico.

O que fazer (e não fazer)?

É indiscutível que os pais e os educadores em geral são os principais modelos para as crianças, embora os outros elementos-chave da sociedade (ídolos, personagens televisivos, heróis) também tenham o seu efeito na formação dos valores e da personalidade.

Se estes adultos de referência mentem (como tantas vezes acontece) e se não se dão ao trabalho de esclarecer porque o fizeram (ou de pedir desculpa por o ter feito quando a mentira não tem uma explicação cabal e lógica), a criança habituar-se-á a que, afinal, mentir «não é tão errado como isso».

Por outro lado, sempre que surge uma situação de mentira por parte da criança, e mesmo tomando em linha de conta as diversas razões que lhe estão na base e das quais mencionei algumas, os pais e educadores deverão ser rigorosos mas compreensivos e não deixar passar o caso sem debater os aspetos éticos da mentira, para além das consequências imediatas do facto.

Se se desenvolve um padrão de mentira repetida ou grave, o caso deverá ser veiculado ao médico assistente que poderá pedir ajuda aos profissionais da área da psicologia.

Algumas crianças não têm o conceito do bem e do mal, em idades em que isso já deveria ser um dado adquirido, e o facto deverá causar preocupação.